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Pessoa humana e liberdade — a queda #02

Foto do escritor: Renan MeloRenan Melo

Atualizado: 4 de jan. de 2024

A personificação do mal no pecado


A cobiça impossibilita aceitar o desejo como algo que estrutura e o torna uma provação, distorcendo tudo a partir da falta. A animalidade se sobressai, ignorando a palavra ou fazendo-a de instrumento de contrariedade.


A serpente torna-se falsamente solidária a esse drama humano, tratando-o com superficialidade e abrindo um abismo entre homem e Deus com a projeção de si mesma sobre Adonai Elohim. Inicialmente, ela coloca-se como um igual, pois sabe e conhece o que Deus sabe e conhece. Depois, a serpente se eleva ao denegri-lo como se Ele fosse um ser duvidoso. Com a contraposição das palavras de Deus e da serpente, cabe à mulher escolher. Ao lado dos humanos, a serpente insinua que Adonai Elohim mentiu e ela diz a verdade, convidando-os a serem como ela. Ao abrirem os olhos e serem como deuses, negam sua condição de criatura e podem confrontar Adonai Elohim pelo conhecimento.


A felicidade está na relação entre o fruto e a capacidade de serem divinos. O prometido – conhecer o bem e o mal – é justamente o que não é alcançado. Aceitar o limite é o que torna a vida possível e plena. A lei da vida é transformada em morte. O amor confiante é distorcido pela cobiça. O “princípio” original do homem, na verdade, é afetado pelo potencial agressivo da concupiscência enquanto ato.


Assim, o pecado original introduz internamente a concupiscência, o desejo, a vontade incontrolada, desequilibrando a pessoa humana em si e em suas relações, modificando a própria identidade.

A relação entre vontade, inteligência e liberdade


A tentação se sobrepõe à falta, relacionada ao modo como cada um vive o próprio limite. A serpente oculta o dom, e a mulher lhe responde (v. 2), colocando a fala de Adonai Elohim no plural (v. 3), tornando-O um legislador frustrante. A fala da serpente vai definindo a vontade, corrompendo a inteligência: Deus mentiu (v. 5). O advérbio de igualdade como ressalta a possibilidade de ser igual, tornando Adonai Elohim um deus que tem tudo, sabe tudo, de poderes ilimitados, que controla o acesso ao saber/poder, em oposição à generosidade e à discrição de Gênesis 1-2.


Tudo o que é necessário é dado à humanidade. A orientação para o fruto também (2, 9). Com conhecimento e vontade é que cometem o pecado. Até mesmo a prova é dom necessário à própria ordenação da vontade livre e à confiança na Palavra. No ouvir, há o desenvolvimento da fé e seus frutos. No acolhimento é que a criatura aprende a amar a Deus. Pela plena consciência, volta-se contra Ele.


O ódio a Deus é expresso no ódio a tudo, na reação da pessoa humana em querer dominar, na negação da sede do infinito, em uma carência de amor. Mesmo que a morte traga remorso, o pecador morre sem se arrepender, na dor da escravidão ao próprio pecado.

A liberdade tanto de pecar quanto de recusar o perdão é pressuposto para a escolha do Bem, da conversão. Retirá-los é solidificar a pessoa humana no estado de pecado. A possibilidade de escolha garante a liberdade, expondo a inteligência, ainda que fragilizada, à emissão de um juízo moral sobre suas opções. Gênesis 3 revela a liberdade para responder a Deus, a liberdade de decidir. Trata-se de um dom que é dado: propriedade do ser e de sua vontade, dependente do próprio eu, que o distingue no mundo. Grudem (2017, p. 263-264) destaca a importância de se conceituar a liberdade, pois ela envolve vontade e decisão, já que a graça, a despeito do cuidado com o fatalismo e o determinismo, não pode ser esquecida:

Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero. ROMANOS 7, 19.

Assim, Deus não é responsável pelo pecado. Nossos atos geram resultados reais e mudam o curso dos acontecimentos, bem como a oração traz resultados definidos.


Consequências nas relações humanas


A serpente é apresentada como uma realidade exterior. Os humanos, como concorrentes. A ambição guia tanto o ato de Deus em proibir que se conheça, mantendo seus privilégios, como o dos humanos, querendo ser como Deus. A soberba, o orgulho, é o primeiro pecado, fazendo os humanos se submeterem à lógica da serpente, um não igual, e não se realizarem enquanto imagem.


A mulher preenche a fala da serpente: ela destaca a falta de conhecimento e coloca-se a partir do limite, buscando superá-lo, enquanto o homem fica em silêncio.


Após o pecado, o ato de conhecer vai para a falta: ambos estão nus, como a serpente, como o deus que acreditam, o que expõe a ruptura com Adonai Elohim.


Permanecem os dois no cenário, mas a serpente fica em segundo plano. A desconfiança permanece. O homem se esconde, à semelhança de um julgamento de delito, quando Adonai Elohim investiga.


Adonai Elohim emite penas (v. 14-19) e oficializa a sentença (v. 21-24). É preciso sair da lógica da culpa e expor a contínua lógica do dom.


“Onde estás?”
Essa pergunta calma que perpassa o jardim está mais para uma tentativa de aproximação. Sem resposta, uma nova tentativa: “Por que te escondes?”.

Cheio de medo, o humano vê Deus sob a lógica de adversário que a serpente lhe implantou. Até o versículo 11, Adonai Elohim não reage conforme o esperado: não julga, não condena, espera uma possível abertura do homem. Com seu fechamento (v. 12), ele acusa diretamente a mulher e a Deus indiretamente, tentando atenuar a própria culpa. O dom é rejeitado na acusação covarde da mulher. Adonai Elohim se volta para ela.


A pergunta do versículo 13 é clara e direta, “por que fizeste isto?”, assim como a resposta: “a serpente me enganou”. A culpa é confessa e a verdade estabelecida: a serpente é mentirosa, e não Adonai Elohim. A própria culpa é secundária. A mulher não segue totalmente a lógica da serpente e a incrimina. No entanto, homem e mulher silenciam sobre a causa do ato, tornando-se semelhantes ao inimigo.


Escrito por Renan Melo.


Referências:


FORTEA, J. A. História do mundo dos anjos. São Paulo: Palavra & Prece, 2012.


LADARIA, L. F. Introdução à Antropologia Teológica. 7. ed. São Paulo: Loyola, 2014.


MERECKI, J. Corpo e transcendência. Brasília: CNBB, 2014.


OLIVEIRA, R. A. de. Da relação corpo-alma à mente-cérebro: a antropologia cristã e as novas cristologias. In: Perspectiva Teológica. Belo Horizonte, v. 46, n. 129, p. 215-245. Maio/Ago. 2014. Disponível em: // www.faje.edu.br/ periodicos/ index.php/ perspectiva/ article/ view/ 2799. Acesso em: 28 out. 2018.


RATZINGER, J. Introdução ao Cristianismo. 8. ed. São Paulo: Loyola, 2015.


WÉNIN, A. De Adão a Abraão ou as errâncias do ser humano. São Paulo: Loyola, 2011.


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