A história da criação deixou a tensão de Gênesis 2, 16-17 com a proibição do fruto do conhecimento do bem e do mal. Assim, Gênesis 3 segue com a chegada de um novo personagem: a serpente.
Em ritmo crescente, logo o versículo 1 destaca a astúcia do novo personagem, “mais que todo vivente”, que traz a nudez comum aos humanos, sem penas nem pelos, expondo a falta e mesmo o limite não humano. A serpente começa falando.
Serpente fala? Se fala, tem algo de humano. Seria expressão da animalidade?
Lembremos que até então não se tinha a compreensão de Apocalipse 12, 9: a serpente era de Satanás. Para o hagiógrafo, a relação está no símbolo do Egito recém-saído, expressão de um Império em torno do rio que serpenteia o norte da África. A entrada é no texto, não na cena, sem ter sido sinalizada ao leitor. Silenciosa e à espreita, ela conduz o diálogo, aproximando-se intencionalmente da mulher, que até então estava em silêncio.
Hagiógrafo
Adjetivo Relativo à hagiografia. Diz-se dos livros do Antigo Testamento, exceto os dos Profetas e o Pentateuco.
Substantivo masculino O que escreve a história dos santos.
Fonte: Dicio.
A ordem de Adonai Elohim de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal é apoderada pela serpente com outro tom. Ela ordena as palavras para acentuar o negativo como a totalidade, mais como um motivo para mobilizar do que com a intenção de uma afirmação. Diz algo que é correto, mas invertendo o que Adonai Elohim realmente falou, manipulando o discurso e fazendo da árvore algo negativo e centro da proposição.
Nem a mulher, nem o homem se preveniram contra a serpente e se aproximam dela. O homem em silêncio, enquanto a mulher responde às interpelações. A sugestão lhe é sedutora, centrando a atenção no fruto, deixando o mais em segundo plano.
Os termos são concretos, sensoriais: comer e tocar. A consequência é uma realidade desconhecida, a morte, não acessível à experiência imediata. Para entendê-la, é preciso confiar na palavra de Adonai Elohim. O olhar é guiado, centralizado, fazendo a mulher ver a árvore e o fruto através das suas palavras e não pela realidade em si. Mesmo com a tentativa de retificar, a mulher não consegue apresentar o sentido original. Reduzindo o olhar, reduz também a compreensão, a consequência de si, do outro, da criação, de Adonai Elohim. O homem não é citado até o v. 7: é como se ele não estivesse presente.
No v. 4, o ataque. A serpente torna mentirosas as palavras de Adonai Elohim, processo que modifica toda a estrutura afetivo-cognitiva:
Ou se morre ao comer do fruto, ou não se morre.
Temos aqui proposições contraditórias. Se Adonai Elohim não disse a verdade, e sim a serpente, Ele mentiu. Portanto, a serpente O equipara a si, colocando-se como um deus sedutor e solidário em paralelo com o anseio humano de querer ser como Deus (v. 5).
Como pano de fundo, o que evidencia é a tentação de definir por si, para si e para o outro o que é bom ou não, tornando-me referência, tornando-me deus, em um processo de idolatria de nós mesmos. Apoderar-se do que Adonai Elohim proíbe é o caminho para satisfazer esse desejo de se definir e de ser referência absoluta. Com a ambiguidade da linguagem, a serpente faz indireto o uso de Adonai Elohim, tornando-O duvidoso e corrompendo a visão que se tem Dele. Olha-se com a ideia, com a mente, não a partir da realidade. A experiência é distorcida. O cuidado amoroso de Adonai Elohim torna-se dissimulação, ocultando o dom discreto, atrás de interesses escusos.
A orientação da serpente é sutil e intencional, mudando do “tu” de Adonai Elohim de 2, 16-17, singular, que define a humanidade em seu ser enquanto desejosa de se abrir à alteridade, para o “vós”, plural: “não comereis” (v. 3).
Em Gênesis 3, o humano é dual, dois. A serpente envolve ambos no discurso, trazendo-os para o diálogo, apontando o fruto e opondo os humanos a Adonai Elohim. Com o pronome pessoal plural “vós”, ela oculta a diferença entre homem e mulher, tornando Deus a causa da frustração.
Mesmo juntos, a mulher come primeiro e só depois dá o fruto ao homem (v. 6), utilizando de justificativas para convencer sobre o que seja bom. Quanto maior o pecado, maior é a necessidade de justificá-lo. O homem aceitou do fruto comido primeiro pela mulher e o comeu. A mesma cobiça que iguala os dois, os colocando em solidariedade perante o pecado, também os separou. A aliança entre homem e mulher, humanidade e criação, humanidade e Adonai Elohim, é quebrada pela transgressão.
Continuaremos esse assunto no próximo post. #01
Escrito por Renan Melo.
Referências
MARTINS. J. G. (Org.). Teologia sistemática. Curitiba: Intersaberes, 2015.
GRUDEM, W. Teologia sistemática. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2017.
FORTEA, J. A. História do mundo dos anjos. São Paulo: Palavra & Prece, 2012.
DUSSEL, E. El dualismo en la antropología de la cristandad. Buenos Aires: Guadalupe, 1974.
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